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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O exemplo irlandês



Durante a vigência do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF), Portugal entreteve-se a comparar o caso português e o caso irlandês. Quando digo, Portugal, refiro-me à comunidade política, governo e oposição incluídos e a opinião publicada nos meios de comunicação e nas redes sociais. Este processo de comparação teve dois fios condutores, distribuídos sequencialmente, mas sempre latentes.
O primeiro traduziu-se na diligência de aproximar Portugal no sentido do exemplo irlandês, no que diz respeito às causas do resgate e à disposição com que enfrentou as medidas do PAEF, afastando-o do exemplo grego. Por sua vez, após a saída da Irlanda do seu PAEF (sem recurso ao chamado programa cautelar), a discussão política em Portugal concentrou-se obsessivamente sobre este ponto. Afinal saímos “à irlandesa” e, aparentemente, foi uma boa opção. Até agora.
A Irlanda entrou pois no nosso imaginário como um país cujo exemplo deveria ser perseguido por um país como Portugal. Diga-se em abono da verdade, que sempre tivemos um certa admiração pela situação privilegiada que o “Tigre Celta” apresentou, no contexto da União Europeia, durante a década de noventa e até 2002. 
Os portugueses embaraçaram-se numa comparação com pouco sentido sobre a Irlanda como modelo para o futuro do país. Uma curta visita a Dublin e a leitura sincopada da sua história, desde os primórdios até ao século XXI, mostra quão inapropriado é esse exercício.   
Apesar do recurso sistemático a informações bilingues na sinalização rodoviária (em gaélico irlandês e em inglês, as duas línguas oficiais) e da obrigatoriedade do ensino do gaélico irlandês nas escolas, os irlandeses exprimem-se na sua esmagadora maioria em inglês. Este facto traduz-se numa vantagem económica muito importante no âmbito do processo de globalização actual.
Dublin, a cidade fundada pelos vikings tem traços fisionómicos e arquitectónicos indiscutivelmente britânicos que traduzem o domínio político, económico e cultural do Reino Unido (RU) durante oito séculos.
Por outro lado, a história recente da Irlanda é radicalmente diferente da história de Portugal. 
Em Janeiro de 1919, após as eleições gerais de 1918, 73/106 membros eleitos pertenciam ao movimento denominado Sinn Féin, que se recusou a tomar os seus lugares na Câmara dos Comuns do RU. O Sinn Féin criou um parlamento irlandês, denominado Dáil Éireann.
O Dáil Éireann proclamou a República da Irlanda emitindo a Declaração da Independência. A declaração estabelecia especificamente que a Irlanda não era um território do RU. Depois de terem travado uma sangrenta Guerra da Independência até Julho de 1921, os irlandeses negociaram com o governo britânico o Tratado Anglo-Irlandês. Este tratado criou o Estado Livre Irlandês que se constituiu como um domínio no contexto do império britânico. Este estado afirmava-se como uma monarquia do tipo constitucional com um governador-geral, um parlamento com duas câmaras, um governo (conselho executivo) e um presidente do conselho executivo.   
Após a assinatura do tratado despoletou-se a Guerra Civil Irlandesa entre aqueles que se opunham às suas disposições (a Irlanda continuava a fazer parte da Commonwealth e os  membros do parlamento tinham de jurar fidelidade ao rei inglês) e aqueles que defendiam o tratado como forma de aceder à liberdade. A destruição causada pela guerra civil causou graves prejuízos económicos e contribuiu para a secessão do território da actual Irlanda do Norte.
Em Dezembro de 1937 entrou em vigor a Constituição da República da Irlanda (Bunreacht na hÉireann) que criou um estado denominado Éire ou Irland. O cargo de governador-geral foi formalmente abolido. Contudo, apenas em Abril de 1949 a Irlanda passou a ser uma república (o cargo de Presidente da Irlanda substituiu o de Rei da Irlanda) e um país totalmente independente.
Portanto, o século XX apresenta a Irlanda como um país a lutar desesperadamente pela sua independência em relação à potência mundial dominante (pelo menos até à 1.ª Guerra Mundial). O processo é de tal forma dramático que precipita o país numa guerra civil. Esta história tem como pano de fundo a realidade de duas guerras mundiais e as crises agrícolas acompanhadas de fome que forçaram a emigrações em massa da ilha.
A Irlanda como país independente no contexto mundial é recente. E a luta pela sua existência está presente no imaginário colectivo. E está também presente no quotidiano de um conflito permanente entre “católicos” e “protestantes” no Ulster.
Na 1.ª metade do século XX Portugal implantou uma república e todo o século foi passado a defender um império perdido há séculos, guerreando em África e na Europa, enquanto se permitia suportar uma ditadura no seu próprio território europeu.
Os portugueses passaram o século XX sem heróis que derramassem o sangue na sua própria terra. Ao invés, os irlandeses libertaram a sua terra e projectaram-na no mundo.       

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