Durante a vigência do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro
(PAEF), Portugal entreteve-se a comparar o caso português e o caso irlandês.
Quando digo, Portugal, refiro-me à comunidade política, governo e oposição
incluídos e a opinião publicada nos meios de comunicação e nas redes sociais.
Este processo de comparação teve dois fios condutores, distribuídos
sequencialmente, mas sempre latentes.
O primeiro traduziu-se na diligência de
aproximar Portugal no sentido do exemplo irlandês, no que diz respeito às
causas do resgate e à disposição com que enfrentou as medidas do PAEF,
afastando-o do exemplo grego. Por sua vez, após a saída da Irlanda do seu PAEF
(sem recurso ao chamado programa cautelar), a discussão política em Portugal
concentrou-se obsessivamente sobre este ponto. Afinal saímos “à irlandesa” e,
aparentemente, foi uma boa opção. Até agora.
A Irlanda entrou pois no nosso imaginário como um país cujo exemplo deveria
ser perseguido por um país como Portugal. Diga-se em abono da verdade, que
sempre tivemos um certa admiração pela situação privilegiada que o “Tigre
Celta” apresentou, no contexto da União Europeia, durante a década de noventa e
até 2002.
Os portugueses embaraçaram-se numa comparação com pouco sentido sobre a Irlanda como modelo para o futuro do país. Uma curta
visita a Dublin e a leitura sincopada da sua história, desde os primórdios até
ao século XXI, mostra quão inapropriado é esse exercício.
Apesar do recurso sistemático a informações bilingues na sinalização
rodoviária (em gaélico irlandês e em inglês, as duas línguas oficiais) e da
obrigatoriedade do ensino do gaélico irlandês nas escolas, os irlandeses
exprimem-se na sua esmagadora maioria em inglês. Este facto traduz-se numa
vantagem económica muito importante no âmbito do processo de globalização
actual.
Dublin, a cidade fundada pelos vikings
tem traços fisionómicos e arquitectónicos indiscutivelmente britânicos que
traduzem o domínio político, económico e cultural do Reino Unido (RU) durante
oito séculos.
Por outro lado, a história recente da Irlanda é radicalmente diferente da história de
Portugal.
Em Janeiro de 1919, após as eleições gerais de 1918, 73/106 membros
eleitos pertenciam ao movimento denominado Sinn Féin, que se recusou a tomar os
seus lugares na Câmara dos Comuns do RU. O Sinn
Féin criou um parlamento irlandês, denominado Dáil Éireann.
O Dáil Éireann proclamou a
República da Irlanda emitindo a Declaração da Independência. A declaração estabelecia especificamente que a Irlanda não era um território do RU. Depois de terem travado uma sangrenta Guerra da
Independência até Julho de 1921, os irlandeses negociaram com o governo
britânico o Tratado Anglo-Irlandês. Este tratado criou o Estado Livre Irlandês
que se constituiu como um domínio no contexto do império britânico. Este estado afirmava-se como
uma monarquia do tipo constitucional com um governador-geral, um parlamento com
duas câmaras, um governo (conselho executivo) e um presidente do conselho
executivo.
Após a assinatura do tratado despoletou-se a Guerra Civil Irlandesa
entre aqueles que se opunham às suas disposições (a Irlanda continuava a fazer
parte da Commonwealth e os membros do parlamento tinham de jurar
fidelidade ao rei inglês) e aqueles que defendiam o tratado como forma de
aceder à liberdade. A destruição causada pela guerra civil causou graves prejuízos
económicos e contribuiu para a secessão do território da actual Irlanda do
Norte.
Em Dezembro de 1937 entrou em vigor a Constituição da República da
Irlanda (Bunreacht na hÉireann) que criou um estado denominado Éire ou Irland. O
cargo de governador-geral foi formalmente abolido. Contudo, apenas em Abril de
1949 a Irlanda passou a ser uma república (o cargo de Presidente da
Irlanda substituiu o de Rei da Irlanda) e um país totalmente independente.
Portanto, o século XX apresenta a Irlanda como um país a lutar
desesperadamente pela sua independência em relação à potência mundial dominante
(pelo menos até à 1.ª Guerra Mundial). O processo é de tal forma dramático que
precipita o país numa guerra civil. Esta história tem como pano de fundo a
realidade de duas guerras mundiais e as crises agrícolas acompanhadas de fome
que forçaram a emigrações em massa da ilha.
A Irlanda como país independente no contexto mundial é recente. E a
luta pela sua existência está presente no imaginário colectivo. E está também
presente no quotidiano de um conflito permanente entre “católicos” e
“protestantes” no Ulster.
Na 1.ª metade do século XX Portugal implantou uma república e todo o
século foi passado a defender um império perdido há séculos, guerreando em
África e na Europa, enquanto se permitia suportar uma ditadura no seu próprio território
europeu.
Os portugueses passaram o século XX sem heróis que derramassem o sangue
na sua própria terra. Ao invés, os irlandeses libertaram a sua terra e
projectaram-na no mundo.
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