Na próxima vez que a T. me perguntar qual é o pensamento de Kant sobre Deus terei de conhecer este texto da Crítica da Razão Pura:
"A felicidade é o estado de um ser racional no mundo no qual em toda a sua existência tudo está de acordo com o seu desejo e vontade, e depende, portanto, da harmonia da natureza com todo o seu fim, tal como com o princípio determinante essencial da sua vontade.
Ora, a lei moral, enquanto lei da liberdade, tem autoridade através da determinação de princípios que são para ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade do desejo (enquanto incentivos); o ser racional actuante no mundo não é também, contudo, a causa do mundo e da natureza em si. Consequentemente, não há qualquer fundamento, na lei moral, para a existência de uma conexão necessária entre a moralidade e felicidade proporcional de um ser que pertence ao mundo como sua parte e portanto dele dependente, e que por essa razão não pode, pela sua vontade, ser uma causa desta natureza e, no que respeita à sua felicidade, não pode pelos seus próprios poderes fazê-lo harmonizar-se completamente com os seus princípios práticos".
Contudo, na tarefa prática da razão pura, isto é, na procura necessária do bem supremo, tal conexão é postulada como necessária: temos o dever de tentar promover o bem supremo (que tem portanto de ser possível). Assim, a existência de uma causa de toda a natureza, distinta da natureza, que contenha o fundamento desta conexão, a saber, a correspondência exacta da felicidade com a moralidade, é também postulada. Contudo, esta causa suprema há-de conter o fundamento da correspondência da natureza não apenas com uma lei da vontade de seres racionais, mas também com a representação desta lei, na medida em que fizerem dela o fundamento supremo e determinante da vontade, e consequentemente não apenas com a forma da sua moral mas também com a sua moralidade enquanto seu fundamento determinante, isto é, com a sua disposição moral.
Logo, o bem supremo do mundo só é possível na medida em que se pressuponha uma causa suprema da natureza que tenha uma causalidade em harmonia com a disposição moral. Ora, um ser capaz de acções de acordo com a representação de leis é uma inteligência (um ser racional), e a causalidade de tal ser de acordo com esta representação de leis é a sua vontade. Logo, a causa suprema da natureza, na medida em que tem de ser pressuposta para o bem supremo, é um ser que é a causa da natureza pelo entendimento e vontade (logo, o seu autor), isto é, Deus. Consequentemente, o postulado da possibilidade do bem supremo derivado (o melhor mundo) é igualmente o postulado da realidade de um bem supremo original, nomeadamente da existência de Deus. Ora, era para nós um dever promover o bem supremo; logo, há em nós não apenas a justificação mas também a necessidade, como uma carência conectada ao dever, de pressupor a possibilidade deste bem supremo que, dado que só é possível sob a condição de existir Deus, conecta o pressuposto da existência de Deus inseparavelmente com o dever; isto é, é moralmente necessário pressupor a existência de Deus.
Deve-se ter em atenção que esta necessidade moral é subjectiva, isto é, uma carência, e não objectiva, isto é, em si um dever; pois não pode haver o dever de pressupor a existência de seja o que for (dado que isto apenas diz respeito ao uso teórico da razão). Acresce que não se deve pensar que é necessário pressupor a existência de Deus como um fundamento de toda a obrigação em geral (pois, como foi suficientemente mostrado, esta repousa unicamente na autonomia da própria razão).
Deve-se ter em atenção que esta necessidade moral é subjectiva, isto é, uma carência, e não objectiva, isto é, em si um dever; pois não pode haver o dever de pressupor a existência de seja o que for (dado que isto apenas diz respeito ao uso teórico da razão). Acresce que não se deve pensar que é necessário pressupor a existência de Deus como um fundamento de toda a obrigação em geral (pois, como foi suficientemente mostrado, esta repousa unicamente na autonomia da própria razão).
O que pertence ao dever aqui é apenas o empenho em produzir e promover o bem supremo no mundo, cuja possibilidade pode portanto ser postulada, dado que para a nossa razão isto só é pensável sob o pressuposto de uma inteligência suprema; pressupor a existência desta inteligência suprema está assim conectado com a consciência do nosso dever, apesar de este pressuposto pertencer à razão teórica; com respeito apenas à razão teórica, enquanto um fundamento da explicação, pode chamar-se hipótese; mas em relação à inteligibilidade de um objecto que nos é dado pela lei moral (o bem supremo), e consequentemente de uma carência para propósitos práticos, pode chamar-se fé e, efectivamente, uma fé racional pura dado que a razão pura só por si (tanto no seu uso teórico como prático) é a fonte na qual tem origem."